Carlos Augusto de Barros e Silva, o Leco, fica incomodado quando alguém sugere que ele possa ter sido o "pior presidente da história do São Paulo". Em dezembro, no fim de sua administração, ele demonstrou o desconforto em uma entrevista a PVC.
Na defesa de seu legado, o então presidente listou, no depoimento por escrito ao jornalista, melhorias que acredita ter proporcionado. Leco disse que deixou o clube melhor do que o encontrou, em 2015.
Hábito comum entre dirigentes, o cartola culpou a pandemia por problemas financeiros. Nos cálculos dele, numa "estimativa realista", o São Paulo deixou de arrecadar cerca de R$ 150 milhões.
Apesar disso, segundo Leco, a instituição recuperou o crédito e trouxe de volta patrocinadores que lhe deram condições para investir e competir em alto nível. Ele ressaltou contratações feitas em 2019.
– Fizemos um enorme esforço de recuperação de crédito, de imagem e de patrocinadores. Isso nos permitiu fazer a reestruturação financeira: mudamos o perfil da dívida, tornamos o clube mais equilibrado – disse o então presidente.
Leco deixou mesmo um São Paulo mais equilibrado para seu sucessor, Julio Casares, no cargo há pouco mais de seis meses? Neste texto, o ge passa pelo balanço tricolor mais recente, referente a 2020.
Panorama
A primeira medida é a comparação entre faturamento (tudo o que foi arrecadado em cada temporada) e endividamento (o que havia a pagar no último dia de cada exercício). Basta um gráfico para perceber que o São Paulo está muito distante do "equilíbrio" propagandeado.
Dívidas hoje representam quase o dobro da arrecadação. É a pior relação que o clube registrou em pelo menos 20 anos de história.
A pandemia não é desculpa. Esse panorama geral mostra que a deterioração das contas tricolores foi acentuada em 2019, na temporada em que Leco fez investimentos mais ousados para tentar ganhar títulos. Taça nenhuma foi conquistada, e o fardo ficou para o próximo.
Receitas
Ao analisar o faturamento no detalhe, é necessário tomar cuidado com os direitos de transmissão. A pandemia causou algumas anomalias nos balanços dos clubes, em termos de contabilidade.
No Campeonato Brasileiro, 30% dos valores de televisão aberta e fechada estão condicionados à posição na tabela. Como a competição foi encerrada apenas em 2021, esta parcela não pôde ser registrada no balanço passado. O dinheiro não foi perdido; só foi adiado.
Outros clubes deixaram explicações em seus balanços sobre valores postergados para o ano seguinte. O São Paulo não escreveu nada. O blog estima que o impacto é próximo a R$ 28 milhões, verba direcionada ao quarto lugar do campeonato, com base em apuração noutras fontes.
Além disso, na comparação entre 2019 e 2020, o São Paulo conseguiu aumentar seus ganhos nessa linha de mídia porque melhorou seu desempenho na Copa do Brasil. As "premiações" obtidas a cada fase, até chegar à semifinal, são computadas na transmissão.
Na área comercial e de marketing, aparecem patrocínios e publicidades do futebol, patrocínios via Lei de Incentivo ao Esporte e licenciamentos. O valor, que já era baixo em 2019, caiu mais uma vez em 2020.
Leco citou na entrevista que, durante a gestão dele, houve a conquista de novos patrocinadores. A menos que o ex-presidente tenha se referido à quantidade, não aos valores, não há evidência de avanço nesta área. Na verdade, trata-se de ponto fraco para um clube de enorme torcida.
Patrocínios (apenas futebol)
R$ 35 milhões em 2016
R$ 57 milhões em 2017
R$ 23 milhões em 2018
R$ 21 milhões em 2019
R$ 16 milhões em 2020
Nas receitas diretamente ligadas à torcida e ao estádio, estão bilheterias, sócios-torcedores e quadro social, principalmente. Esta é a parte afetada pela pandemia, como em todos os clubes, na medida em que o Morumbi não pôde receber público nos jogos de futebol por causa do coronavírus.
No total, a redução nesta área foi de R$ 46 milhões entre 2019 e 2020. Um baque considerável para um clube que contava com até mais dinheiro, sem dúvida, porém muito distante dos R$ 150 milhões que Leco alegou terem sido perdidos por causa da pandemia.
A salvação tricolor, para variar, apareceu nas transferências de jogadores. Como esta foi a única receita que a diretoria ofereceu algum detalhe no balanço, o blog mostra as principais negociações:
R$ 75 milhões por Antony para o Ajax
R$ 32 milhões por David Neres para o Ajax
R$ 24 milhões por Gustavo Maia para o Barcelona
R$ 2 milhões por Vitor para o Gil Vicente
R$ 2 milhões por empréstimos e mecanismos de solidariedade
Orçado versus realizado
Também é possível avaliar a qualidade de uma administração por meio de outra comparação: entre orçamento (com projeções feitas pela diretoria antes de a temporada começar) e balanço (com os números efetivamente alcançados, contabilizados após o fim do ano).
O São Paulo não publica orçamentos, então este é um cálculo que o torcedor está impedido, por opção de sua diretoria, de fazer por conta própria. O blog obteve uma cópia do orçamento com fonte próxima à direção tricolor, por isso fará a seguir a comparação.
No orçamento, novamente, é preciso ter cautela com a linha dos direitos de transmissão. Como parte dos ganhos ficou para o balanço de 2021, a comparação entre orçado e realizado não é ideal.
Nas demais linhas e no total, percebe-se que a administração de Leco errou grosseiramente. O clube aguardava uma arrecadação de R$ 541 milhões em 2020. Na verdade, conseguiu apenas R$ 348 milhões.
É comum que determinadas projeções não se cumpram. Mas a frustração em uma frente precisa ser compensada por um excedente em outra. Por incrível que pareça, o São Paulo não cumpriu nem mesmo a expectativa nas transferências de atletas. Mesmo tendo vendido bem.
Na folha salarial, aparecem salários, encargos trabalhistas, direitos de imagem e de arena. Depois de ter inchado o custo em 2019, enquanto montava o elenco que tentaria ganhar títulos, a diretoria tricolor começou 2020 com a expectativa de reduzir consideravelmente a folha.
No fim das contas, a gestão são-paulina não reduziu quase nada e ficou muito distante da meta que tinha colocado para si mesma. Foram gastos R$ 200 milhões, muito mais do que o orçado para o ano.
Além do futebol, é possível analisar com base no balanço como andam as contas do clube social, ou seja, do núcleo formado por pessoas que frequentam as dependências e praticam atividades no Morumbi. Também estão incluídos nessa comparação os esportes amadores.
Em 2020, houve:
R$ 25 milhões em receitas
R$ 33 milhões em despesas
O blog desconsiderou, entre as despesas, os registros de depreciações e amortizações, pois são itens meramente contábeis, sem desembolso de dinheiro. E mesmo assim houve um deficit de R$ 8 milhões.
Na prática, significa que o futebol profissional (financiado por torcedores) é usado pela política são-paulina para sustentar as atividades sociais e esportes amadores (praticados por associados e conselheiros).
No resultado financeiro, estão contabilizados principalmente juros sobre dívidas, taxas bancárias e variações cambiais. O blog não consegue explicar adequadamente esse número – também muito pior do que o orçado –, pois o balanço não contém o detalhamento apropriado.
No fim das contas, o resultado líquido aponta para um deficit (prejuízo) de R$ 130 milhões. Antes de a temporada começar a diretoria são-paulina projetava um superavit (lucro) de R$ 69 milhões.
É importante entender o prejuízo. Não quer dizer que tenham faltado R$ 130 milhões em dinheiro, na diferença entre receitas e despesas, pois entre os custos existem alguns itens sem "efeito caixa" – ou seja, eles são registrados no balanço por motivo contábil, mas não têm desembolso.
Mesmo quando subtraídos esses itens (amortizações, baixas de direitos, depreciações e contingências), o São Paulo demonstra ter uma diferença negativa entre receitas e despesas acima de R$ 30 milhões no ano.
O que isso significa na prática? Pense nas suas finanças pessoais. Se os seus gastos são maiores do que toda sua renda, falta dinheiro. Além de não conseguir pagar as dívidas que venciam, você ainda fez novas dívidas por causa do buraco nas contas. Este é o São Paulo de Leco.
Dívidas
Com contas no vermelho, e mesmo assim contratando jogadores para buscar a consagração pessoal de seu presidente, o São Paulo deixou agravar muito seu endividamento entre 2019 e 2020.
Na última entrevista antes de deixar o cargo, o então presidente Leco usou uma expressão curiosa para defender sua gestão. Ele disse que "mudou o perfil da dívida", que "tornou o clube mais equilibrado".
Uma das métricas para entender o perfil do endividamento é a separação de acordo com o prazo. E aí dá para perceber que, não só o São Paulo não equilibrou sua dívida, na verdade, ela ficou muito pior.
Ao término de 2020, havia R$ 393 milhões a pagar em período inferior a um ano – portanto, no decorrer de 2021. Ainda mais porque as contas operacionais estão operando no vermelho, este valor é impraticável, impagável, impossível de honrar nos prazos combinados.
Nesta situação, uma saída geralmente acessível é buscar crédito no mercado financeiro para tapar os buracos no orçamento. Só que a diretoria comandada por Leco bloqueou essa passagem em 2019, quando aumentou muito a quantidade de empréstimos.
Crédito não é ilimitado. Instituições financeiras emprestam dinheiro a clubes de futebol desde que recebam garantias de pagamento, geralmente contratos de televisão e patrocínios. Essas eram as dívidas bancárias do São Paulo em 31 de dezembro de 2020:
R$ 11 milhões ao Banco Tricury (a pagar em 2021)
R$ 11 milhões ao Banco Rendimento (a pagar em 2021)
R$ 1 milhão ao Banco Daycoval (a pagar em 2021)
R$ 6 milhões ao Banco Daycoval (a pagar em 2023)
R$ 600 mil ao Banco Inter (a pagar em 2021)
R$ 20 milhões ao Banco BMG (a pagar em 2021)
R$ 21 milhões ao Banco Bradesco (a pagar em 2021)
R$ 6 milhões ao Star Football Finance Fund (a pagar em 2021)
R$ 43 milhões ao BHP Asset Management (a pagar em 2021)
Não satisfeita em endividar o clube com instituições financeiras, a direção também buscou crédito com empresários da bola. Valores que aumentaram em 2020. No balanço, foram registradas as dívidas:
R$ 16,5 milhões a André Cury (a pagar em 2021)
R$ 5 milhões a Carlos Leite (a pagar em 2021)
R$ 800 mil a Fabio Mello (a pagar em 2021)
Essas dívidas são perigosas para o clube, pois, além de carregar contratos como garantia de pagamento e de ter taxas de juros (não reveladas), amarram o clube a esses empresários. Deixar de honrar compromissos pode ter efeitos diversos na gestão do futebol.
E esse é, grosseiramente, apenas um terço de todo o endividamento tricolor. Em 2020, também houve a disparada das obrigações trabalhistas e dos direito de imagem, sinal de que tem havido graves dificuldades para manter salários de jogadores e funcionários em dia.
O São Paulo ainda tem outro tipo de dívida relevante: com a aquisição de direitos de atletas. E essa não é uma dívida composta apenas por clubes. Quando o ex-diretor de futebol Raí fechava negociações para compra e venda, fazia compromissos de comissões para intermediários.
A contabilidade tricolor registra essas dívidas no balanço assim.
Em 2019, havia:
R$ 98 milhões a pagar para outros clubes por aquisições de atletas
R$ 35 milhões a pagar por intermediações em vendas de atletas
R$ 33 milhões a pagar por intermediações em aquisições de atletas
Em 2020, havia:
R$ 66 milhões a pagar para outros clubes por aquisições de atletas
R$ 65 milhões a pagar por intermediações em vendas de atletas
R$ 40 milhões a pagar por intermediações em aquisições de atletas
No gráfico abaixo, essas dívidas relacionadas a atletas vendidos e comprados respondem pela maior parte dos "outros", junto de dívidas menores com fornecedores. Elas representam um terço do total.
Dívidas não provisionadas
O São Paulo tem ações judiciais (cíveis e trabalhistas) movidas contra ele em andamento. Em cada balanço, a diretoria determina a probabilidade de perda nesses processos segundo as nomenclaturas:
"Provável"
"Possível"
Apenas os valores de perdas "prováveis" são inseridos no passivo e consequentemente no endividamento demonstrado nos gráficos anteriores. Além deles, o São Paulo possui R$ 129 milhões em processos em que seu departamento jurídico considera a derrota apenas "possível". Isso significa que o endividamento pode ficar ainda maior.
A natureza dessas ações é:
R$ 28,5 milhões para Prefeitura de São Paulo
R$ 8,5 milhões para o Sindicato de Atletas de São Paulo
R$ 13 milhões para a Receita Federal
R$ 28 milhões em ações trabalhistas de atletas
R$ 13 milhões em ações trabalhistas diversas
R$ 38 milhões em ações cíveis diversas
Futuro
Façamos um exercício básico para demonstrar a gravidade da situação. Recapitulando: as contas do São Paulo operam no vermelho. Isso quer dizer que a diferença entre receitas e despesas do cotidiano é negativa. Falta dinheiro para pagar o que há de mais básico na administração.
Por mais que a nova diretoria, de Julio Casares, dê um jeito de fechar essa conta no "zero a zero" – sem perder dinheiro, mas sem sobrar nada para pagar dívidas –, a situação ainda estará calamitosa.
Considerando só o curto prazo (menos de um ano), o São Paulo entrou em 2021 com nada menos do que R$ 393 milhões a pagar. O valor que estava na conta bancária já foi subtraído para calcular esse endividamento, seguindo o critério adotado pelo ge nas análises.
No mais, o clube ainda tinha R$ 65 milhões a receber no curto prazo por jogadores vendidos. Sabe como é: a receita aparece toda de uma vez ali nas transferências, mas as vendas são parceladas, então ainda tem dinheiro para entrar das negociações feitas recentemente.
Um menos o outro, o São Paulo está com R$ 328 milhões "descobertos". Não tem grana para pagar, não sabe de onde tirar. Uma situação constrangedora para um clube que, não muito tempo atrás, era considerado modelo de administração para o restante do país.
O que Julio Casares, o novo presidente, pode fazer? Vender mais jogadores para conseguir dinheiro rápido, tentar mais alguma coisa em empréstimos, implorar aos credores para que tenham paciência e não levem suas insatisfações para a justiça. Se nada disso der certo, vira calote, multa e ação judicial. Com juros, claro. A crise só aumenta.
Leco se gabou, na entrevista ao PVC, de ter alterado o estatuto e criado um Conselho de Administração para servir de contrapeso aos poderes da diretoria. "Um ambiente propício à profissionalização".
Se quisesse mesmo ter modernizado o São Paulo, em primeiríssimo lugar deveria haver a previsão, no estatuto, de responsabilização (em pessoa física) de dirigentes que pratiquem gestão temerária. A política precisaria ter se mexido. Se houvesse algum mecanismo para que o bolso do irresponsável fosse afetado, quem sabe?
Transparência com a torcida só faria bem. A publicação de orçamentos e balancetes (trimestrais, pelo menos) permitiria ao são-paulino acompanhar mais de perto a gestão. Tanto para se conscientizar do momento de crise, quanto para fazer cobranças de maneira construtiva.
Carlos Augusto de Barros e Silva, o Leco, deixou um São Paulo muito pior do que encontrou. Após mais de cinco anos no poder, o cartola investiu como nunca e deixou um legado que levará anos para ser desfeito. Mesmo se tivesse sido campeão, teria causado um estrago enorme.
A "sorte" do são-paulino é que, no futebol brasileiro, tem muita gente pior. A fila do rebaixamento para a Série B tem muitos candidatos à frente. E o elenco montado com base em gastança, mesmo com críticas de torcida, ainda se sobressai diante da concorrência. Mas é melhor o torcedor ficar esperto. Se Julio Casares não começar uma reestruturação (de verdade) para já, o futuro tricolor pode se tornar ainda mais sombrio.
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