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O bem-aventurado Papa João Paulo II beatificou e canonizou, no ano 2000, sua conterrânea Santa Faustina Kowalska, uma santa religiosa que recebeu visões e revelações de Nosso Senhor a respeito da Divina Misericórdia. Em seu famoso diário, Santa Faustina relata o momento em que Jesus lhe pediu a instituição da festa da Sua Misericórdia:
"A Minha imagem já está na tua alma. Eu desejo que haja a Festa da Misericórdia. Quero que essa Imagem, que pintarás com o pincel, seja benzida solenemente no primeiro domingo depois da Páscoa, e esse domingo deve ser a Festa da Misericórdia." [1>
Atendendo ao apelo do próprio Jesus pelas palavras de Santa Faustina, João Paulo II estabeleceu o segundo domingo da Páscoa – tradicionalmente conhecido como Dominica in Albis – como a festa da Divina Misericórdia. E, este ano, ele mesmo será canonizado por ocasião da festa que instituiu.
Mas, o que é verdadeiramente a misericórdia de Deus? Qual a teologia que está por trás dessa bela festa da Igreja?
O padre Reginald Garrigou-Lagrange, ao explicar por que "Mãe de misericórdia é um dos maiores títulos de Maria", distingue a "misericórdia, que é uma virtude da vontade, e a piedade sensível, que não passa de uma louvável inclinação da sensibilidade". Esta última – que "nos leva a nos compadecer dos sofrimentos do próximo, como se nós o sentíssemos em nós mesmos" – é própria apenas dos seres humanos, não de Deus, "já que [Ele> é um espírito puro" [2>. Nas palavras de Santo Tomás de Aquino, "não é próprio de Deus contristar-se com a miséria de outrem" [3>. Mas, é própria de Deus a misericórdia, que é fundada na vontade. Ao dirigir-se às criaturas, Ele sempre as ama misericordiosamente.
Em nenhuma outra obra divina essa realidade é mais palpável que na Redenção. O homem, que já era um nada diante de Deus pela simples condição de criatura, após o pecado, ficou, por assim dizer, "abaixo do nada". E foi por este homem que o próprio Deus se encarnou e manifestou a Sua misericórdia.
Quanto à questão se a Encarnação teria acontecido, mesmo que o homem não tivesse pecado, alguns teólogos escolásticos – como Duns Escoto – são da posição afirmativa: ainda se o homem não tivesse pecado, Deus teria se encarnado. O Aquinate, ao contrário, responde deste modo:
"As obras puramente voluntárias de Deus, sem haver nenhum débito para com a criatura, nós não as podemos conhecer, senão enquanto manifestadas pela Sagrada Escritura, que nos torna conhecida a vontade divina. Ora, como a Sagrada Escritura, sempre dá como razão à Encarnação o pecado do primeiro homem, mais convenientemente se diz que a obra da Encarnação foi ordenada por Deus como remédio do pecado, de modo que, se o pecado não existisse, a Encarnação não teria lugar. Embora por aí não fique limitado o poder de Deus; pois, Deus teria podido encarnar-se mesmo sem ter existido o pecado." [4>
Tomás destaca que a Encarnação é um ato da soberana liberdade de Deus. Quando Ele decidiu encarnar-Se, em seu plano de amor, fê-lo como realidade que pressupunha a queda do homem. Não se deve ficar construindo hipóteses, como se Deus pudesse caber em raciocínios humanos, nem limitar o poder de Deus, que "teria podido encarnar-se mesmo sem ter existido o pecado".
Então, a misericórdia infinita de Deus se mostra eminentemente na Redenção. Por isto é coerente dizer que do peito aberto de Jesus, trespassado pela lança, brotam os rios "da misericórdia divina" – a água e o sangue [5>: porque, de fato, é na Redenção que Ele manifesta de modo mais elevado a Sua misericórdia. Muito mais que na Criação, a propósito. Nesta, Deus faz as criaturas do nada; naquela, porém, Ele faz muito mais: transforma um réprobo, uma pessoa que merecia o inferno, em um salvo, em um eleito.
"De dois modos podemos dizer que uma obra é grande. – Quanto ao modo de agir e então a maior obra é a da criação, em que o ser foi feito do nada. – Ou quanto à grandeza da obra. E neste sentido maior obra é a justificação do ímpio, que termina pelo bem eterno da participação divina, do que a criação do céu e da terra, que termina no bem da natureza mutável. Por isso, Agostinho, depois de ter dito, que maior obra é fazer do ímpio um justo, que criar o céu e a terra, acrescenta: O céu e a terra passarão; porém a salvação e a justificação dos predestinados permanecerão." [6>
Mas, pergunta-se, como é possível conciliar a misericórdia de Deus com a Sua justiça? Garrigou-Lagrange, ao falar desses dois atributos divinos, escreve que, se a justiça é um "galho" da árvore do amor de Deus, esta árvore não é senão a sua misericórdia e a sua bondade, sempre desejosa de comunicar-se aos homens e "irradiar-se" [7>. Em outras palavras, a justiça divina sempre se manifesta na vida dos homens como demonstração de Seu amor e de Sua misericórdia. Quando somos acometidos por doenças e sofrimentos, podemos certamente dizer que elas não passam de "penas medicinais", "remédios de Deus", a fim de que nos convertamos e nos voltemos a Ele. Em meio às cruzes deste "vale de lágrimas", urge que enxerguemos, em nossas vidas, a ação onipotente de Deus, que é capaz de tirar o bem do mal – e verdadeiramente o faz.
Entretanto, quando Deus nos perdoa e não nos pune por nossos pecados, não está, de certo modo, cometendo uma "injustiça"? Segundo Tomás, não:
"Deus age misericordiosamente, quando faz alguma coisa não em contrário, mas, além da sua justiça. Assim, quem desse duzentos dinheiros ao credor, ao qual só deve cem, não pecaria contra a justiça, mas agiria liberal ou misericordiosamente. O mesmo se daria com quem perdoasse a injúria, que lhe foi feita; pois, quem perdoa, de certo modo dá; e por isso o Apóstolo chama ao perdão, doação (Ef 4, 32): Perdoai-vos uns aos outros como também Cristo vos perdoou. Donde resulta que, longe de suprimir a justiça, a misericórdia é a plenitude dela. Donde, o dizer a Escritura (Tg 2, 13): A misericórdia triunfa sobre o justo." [8>
O perdão misericordioso concedido aos pecadores não está "abaixo" da justiça – como que a contrariando –, mas "além" dela. Em Deus, não existe "justiça comutativa" – dar a alguém aquilo que se lhe deve –, já que Ele não deve nada a ninguém. O que há é a "justiça distributiva", em que Ele distribui seus dons aos homens, dons que não lhes eram devidos; obras, portanto, de Sua misericórdia.
Pergunta-se, ainda, como conciliar a misericórdia divina com a existência do inferno. Para resolver esse problema, é preciso entender que o inferno existe não por uma deficiência do amor de Deus – que é, por essência, infinito –, mas por um abuso da liberdade humana. Quando um católico, por exemplo, que recebeu a graça de ser incorporado à Igreja, ter acesso aos Sacramentos, à vida dos santos e à Palavra de Deus, se fecha aos apelos do céu e endurece o seu coração, está vivendo uma realidade chamada "remorso". O remorso, longe de ser uma dor pela ofensa cometida contra Deus, é um "remordimento" de si mesmo, como um animal que se põe a lamber as próprias feridas. Nessa atitude, percebe-se uma rebelião contra Deus, uma atitude de orgulho que impede que a misericórdia divina aja efetivamente sobre a alma. Por isso, é necessário sempre pedir a Deus a graça do verdadeiro arrependimento de nossos pecados.
Quem não chegou ao conhecimento do Evangelho deve acolher os apelos de Deus em sua consciência para que se salve por caminhos que só Ele conhece. No caso de um católico, todavia, privilegiado por estar na Santa Igreja, desprezar o grande dom dos Sacramentos – sobretudo, o da Confissão e o da Eucaristia – seria uma grande ingratidão. "A quem muito se deu, muito se exigirá. Quanto mais se confiar a alguém, dele mais se há de exigir" [9>, diz Nosso Senhor. Eis o coração da festa da Divina Misericórdia: como alguém, incorporado ao Corpo Místico de Cristo e consciente do amor infinito que Jesus manifestou por si na Cruz, pode deixar de corresponder a essa atitude, devolvendo com amor a um Deus tão bondoso?
A tal ponto chegou a bondade de Deus que, não se contentando em compadecer-Se e encarnar-Se para nos salvar, quis deixar-nos o precioso dom da Eucaristia, a fim de que, comungando quotidianamente de Seu próprio Corpo e Sangue, nos santificássemos. Então, como Ele nos deu tanto, devemos respondê-Lo com muito, ao invés de presumirmos de nossa salvação e afundarmo-nos no pecado. Diz Nosso Senhor a Santa Faustina: "A falta de confiança das almas dilacera-Me as entranhas. Dói-Me ainda mais a desconfiança da alma escolhida. Apesar do Meu amor inesgotável, não acreditam em Mim, mesmo a Minha morte não lhes é suficiente. Ai da alma que deles abusar!" [10>.
Ora, não se disse, no começo do programa, com o Aquinate, que "não é próprio de Deus contristar-se"? Como, então, entender a mensagem de Jesus, que diz sentir dilaceradas as Suas entranhas pela "falta de confiança das almas"? Que se entenda: Nosso Senhor verdadeiramente sofreu, ao encarnar-Se e experimentar a Paixão. Mas, considerando que agora está no Céu, em corpo glorioso, e não pode mais sentir dor, dizer que Deus "se entristece" ou "sente dor" não é nada mais que um recurso metafórico e pedagógico para fazer as pessoas compreenderem o quanto Ele ama os homens. Não se pode atribuir paixões a Deus: Ele realmente nos amou, nos ama e nos amará eternamente, porque não revoga seus decretos de amor. Entretanto, a dor propriamente dita só aconteceu no coração humano de Cristo em seu suplício terreno.
Por isso, a festa da Divina Misericórdia e a devoção a Jesus misericordioso são uma forma de renovar a tradicional devoção ao Sagrado Coração de Jesus; de celebrar o coração humano de Cristo que amou a Deus infinitamente e fez-Se vítima para salvar a humanidade.
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