Sobre perder o que realmente importa

Fonte Blog do Torcedor
[peço licença aos amigos leitores para narrar um breve relato, uma homenagem ainda meio dolorida que, como muito de nossas vidas, tem o Tricolor como pano de fundo. E isso, neste momento, me pareceu bem mais relevante do que apontar os erros de posicionamento do trio de zaga em Itaquera ou as boas mexidas de Rogerio consertando seus erros iniciais. O texto a seguir é sobre um sentimento inextinguível despertado justamente num Majestoso muito tempo atrás]

Domingo, 3 de maio de 1998. Um Dia das Mães e tanto para um moleque a apenas quarenta dias de completar a primeira década de vida. A cidade estava diferente daquela cinzitude blasé tipicamente paulistana que ele havia se acostumado a ver. Entre uma e outra pedrada oitentista da Alpha FM, em cada semáforo do trajeto um vendedor abordava seu bigodudo pai: "Tricolô hoje, patrão?", enquanto segurava a bandeira que tentava negociar e habilmente escondia a do arquirrival nas costas. A preferência clubística dentro do veículo era óbvia, visto que a criança no passageiro usava um surrado uniforme 2 dos tempos de patrocínio da TAM, e pouco importava o fato do pai ser santista.
O destino da dupla não era o fervente Cícero Pompeu de Toledo, e sim a casa da Vó, como todos os domingos. Acho que era Lionel Richie cantando alguma coisa no rádio quando o Santana 86 verde estacionou na Jorge Tibiriçá, o pai e seu rebento saltaram, abriram o portão baixinho de madeira e foram recebidos com açúcar e afeto pela Dona Maria José, na maior festa. Açúcar, sim, pois como de praxe a senhora de 77 anos de idade havia lembrado de passar na feira, encarar o sol a pino, comprar picolés de côco e preparar um frappé para o neto e o filho. Afeto, também, pois essa era ela, a criatura mais terna a já se apresentar àquele menino que até esquecia seu desgosto por côco e entornava ávido o copo.
A vó, simples que era, podia não manjar uma vírgula sobre o que era um volante, um impedimento ou a lei da vantagem, ainda mais com a surdez aguda tendo lhe custado um dos sentidos já há muitos anos, mas ela era mais do que astuta para saber que aquele não era qualquer dia não. Tinha final do Paulistão e a ansiedade estava em cartaz no rosto do garoto. Ano passado tínhamos perdido do Corinthians (bem, na verdade, empatado) e na semana anterior, no primeiro jogo da decisão, também. Foi só por 2x1 e como tínhamos a melhor campanha, uma vitória simples no segundo jogo nos daria a taça.
Não seria nada fácil. Os caras tinham Gamarra, Marcelinho, Rincón, o Ronaldo original, o Souza com aquela canhota infernal, o Edilson, o Sylvinho e o Luxemburgo que ano passado tinha montado um tremendo time bom no Santos, reunindo basicamente um monte de ex-são paulinos dos anos áureos (Zetti, Ronaldão, Muller, Caio, Macedo e até o Careca e o Marco Aurélio Cunha). Os caras do Parque São Jorge tinham uns garotos surgindo também: um tal de Vampeta, que parece que jogava de lateral-direito e já tinha tido experiência na Europa, e o Cris, um zagueiro da base que tinha até cabelo. Eram um time embaçado, apesar de terem brigado ponto a ponto contra o rebaixamento no último Brasileirão e terem passado na bacia das almas pela Portuguesa numa polemicíssima semifinal.
Mas a gente tinha que vencer, custe o que custasse. É bem verdade que tínhamos estrelas em má fase, como Aristizábal e Dodô, além de Carlos Miguel retornando de lesão, Capitão improvisado na zaga e as ainda inexperientes promessas Alexandre Rotweiller e Fabiano com a chave do meio-campo. Tínhamos um lateral-direito que foi revelação aos 29 anos e, como tinha acabado de demolir o poderosíssimo Palmeiras de Felipão, Alex, Arce e Zinho na semifinal, estava surpreendentemente cotado pra ser reserva do Cafu na Copa de 98, dali a um mês e uns dias. Tínhamos o surgimento de um goleiraço que sabia cobrar faltas, ainda lutando pra recuperar suas madeixas depois de rasparem com máquina zero na Seleção.
Tínhamos, pensando bem, até que bastante coisa, incluindo um zagueiro tetracampeão mundial em 94 como titular e convocado por Zagallo para tentar o penta na França logo mais. Tínhamos um dínamo ofensivo na esquerda, com a espetacular dupla Serginho e Denílson. Ah, esse último aí era o bambambam do Brasil e tava se despedindo, vendido por uma fortuna inimaginável pro futebol espanhol, onde certamente teria uma carreira mais do que brilhante. "A reencarnação de Canhoteiro", diziam as capas de revista. Ele era outro que iria se apresentar na Granja Comary pra Copa do Mundo aquela semana. Tínhamos um rapaz desengonçado que desandou a meter gols de tudo que é jeito e virou titular no meio da campanha. Tínhamos agora a nosso lado o técnico que, treinando o Corinthians em 97, nos tirou aquele mesmo título paulista que tanto cobiçávamos ali um ano depois.
Sobretudo, tínhamos a maior arma secreta deste planeta. O garoto havia lido durante a semana no caderno de esportes da Folha que o ídolo cuja comemoração ele tentava imitar nas peladas do recreio da escola havia pego um avião e decidido voltar, após 5 grandes anos na França. Simplesmente assim: me dá uma passagem aí, moço. Valeu, comandante. Obrigado pelas instruções e o lanchinho, aeromoça. Au revoir, Charles de Gaulle. Olá, Guarulhos. A cartolagem ficou ouriçada quando descobriu que o regulamento do campeonato permitia a inscrição de um reforço às vésperas da final. Como diabos deixaram isso passar e assinaram o documento? "Trapaça!", "Má fé!", as acusações nas mesas redondas não paravam, mas o fato é que Raí, a maior lenda da história daquele templo sagrado do futebol, ia jogar a grande decisão, reestreando justo contra uma equipe que ele tanto castigara no passado.
No campo, Galvão Bueno se esgoelava, transmitindo cada sístole e diástole da emoção que compunha o espetáculo. Mesmo antes de Sidrack Marinho silvar seu apito, a transmissão da TV se dedicava muito ao tema do Dia das Mães, se encarregando até de convocar as mamães de vários dos jogadores para irem às cativas do Morumbi e acompanharem a peleja. De 10 em 10 minutos, elas eram filmadas: "A mãe do volante Fabiano está muito nervosa, Galvão, mas aposta que seu filho vai fazer o gol do título". Éééé, amigo, é teste pra cardíaco. O estádio pulsava, o concreto tinha vida, era lindo ver 80.000 almas flamejantes divididas meio a meio nas arquibancadas, num festival de cores, fogos e gritos contagiante, mesmo que fosse pela tela de uma televisão meio velha.
Conforme o jogo rolou, o garoto teve certeza absoluta que tinha dois ídolos: um veterano, recém-retornado do Velho Mundo, que era Raí, autor de um gol e de um passe mágico para outro naquela tarde. O segundo era o jovem sem grife vindo de Codó, no Maranhão. Françoaldo Sena de Souza não devia nem saber, mas entrou para o panteão dos heróis com seus dois gols e a atuação assombrosa de tão perfeita. Dribles, chutes arriscados, uma determinação absurda e a personalidade de quem estava disposto a se tornar alguém na história de um clube tão grandioso, mas tão adormecido após a Era Telê.
Os anos de fraquejadas acabaram nos pés e na cabeça de França e de Raí, donos das camisas 27 e 23. O São Paulo era campeão e o pai abria o sorriso tímido de costume, dizendo "Tico, não podia dar outra. A gente deu um baile o jogo todo, é campeão pô, é campeão!" (entregando discretamente ali que seu amor pelo filho estava alguns quilômetros acima do seu amor pelo Santos). A avó assistia satisfeita a TV que lhe parecia muda, observando cada expressão de deleite do neto, que a abraçou sem muito jeito de comemorar. Era seu primeiro título no futebol.
Dezenove anos, um mês e dez dias se passaram. Um Alzheimer surgiu no caminho, evoluiu, levou da Vó Maria a consciência, mas não a capacidade de sentir. O leito do hospital passou a ser uma rotina para aquela senhora de 96 anos, que viu, portanto, o São Paulo Futebol Clube nascer e crescer, fazendo morada no peito da família. Ainda muito puto com Maicon, Lucão, Douglas, Cícero, o bizarro tratamento dispensado pelo clube a seu ídolo-mor Diego Lugano e os pesadelos vividos em Itaquera em mais um domingo qualquer, o neto acordou. Melhor dizendo, foi acordado na terça-feira, 13 de junho, por seu pai, que ainda ostenta aquele bigode de respeito, agora definitivamente grisalho. Era seu aniversário de 29 anos, mas não havia o que festejar: "Tico, a Vó Maria descansou".
Vai em paz, Vó. E fica tranquila que daquele abraço eu não esqueço.
PS: Tem Twitter? Me segue lá: @pedro_de_luna
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