O preconceito nos estádios é sintoma de algo maior, de algo anterior, que é o preconceito que molda as nossas subjetividades desde que nos entendemos por gente. Na infância, o menino é ensinado a não querer ser "viadinho" em hipótese nenhuma e a chamar o amigo de "viadinho" quando este não se comporta conforme os ditames da masculinidade hegemônica. Às vezes, vai chamar o amigo de "viado" só de zoeira, mesmo que este não tenha feito nada de mais. E, mesmo que nenhum deles ache que está sofrendo preconceito, o que é comum que aconteça ("é só uma brincadeira!", podem dizer ambos), é importante termos em mente que a cada vez que a palavra "viado" é utilizada como xingamento se reforça a ideia de que ser viado é terrível... e aí vocês já podem imaginar o tanto de obstáculos que alguém terá pela frente ao se descobrir e ao se assumir LGBTQIA+.
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Acredito profundamente que, se fomos capazes de aprender práticas discriminatórias (e fomos, porque elas não vêm nos nossos genes), somos também capazes de desaprendê-las. Esse desaprendizado e reaprendizado, no entanto, não é algo simples. Como costuma dizer a Amanda Palha, uma das travestis mais brilhantes que conheci, a gente gosta de falar em desconstrução, mas acha que desconstrução é brincar de lego, quando a metáfora mais apropriada talvez fosse modificar um edifício. Imagina o trabalho que dará e o cuidado com que deve ser feita qualquer tentativa de mudança estrutural. Desconstrução não é uma pecinha que a gente tira e coloca em outro lugar.
Sempre me lembro de um dia em que quase fui atropelada na rua e, na hora de xingar o motorista, soltei logo um "seu cuzão filho da puta". Vejam bem, eu sou travesti e já exerci o trabalho sexual, sou uma militante putafeminista inclusive, mas nada disso impediu que, num momento de descontrole, eu soltasse um xingamento que remetesse ao tamanho do ânus do cidadão e que sugerisse que a mãe dele é puta. Por mais que tenhamos anos de estrada na militância, anos de desconstrução, aqui e ali vão acabar vindo à tona reflexos desse adestramento discriminatório que recebemos desde o berço.
Sem contar que, se o objetivo é xingar, ofender, fazer com que a pessoa se doa, então é preciso utilizar expressões que a desestabilizem. Chamar de bobo, feio, trapalhão não funciona. Uma situação engraçada que me ocorreu foi quando, quinze anos atrás, bem antes de existir como travesti, tive um conflito com uma portuguesa e ela me chamou de "gaudério". Dava para ver que era um xingamento, mas como eu não fazia ideia do que aquilo significava, eu achei graça e ri, deixando ela ainda mais possessa.
Xingamentos têm que existir? É possível acabar com eles? Existe xingamento que não se baseie, em alguma instância, em discursos discriminatórios? São discussões que precisam ser feitas. Estamos querendo proibir manifestações racistas e LGBTfóbicas nos estádios, mas o machismo segue perfeitamente aceitável. Ou será que vão instituir punições para cada vez que "filho da puta" e afins forem gritados nos estádios?
De qualquer forma, não acredito que a superação desse tipo de situação ocorra com proibições e multas. Proibir pode evitar que o preconceito se manifeste por um tempo, mas ele fica lá represado só à espera de um contexto em que possa voltar à tona. Como o que estamos vendo com essa onda de extremistas de direita ganhando voz no Brasil e no mundo.
Proibir seu filho de chamar o amiguinho de viado, ou colocá-lo de castigo, nada disso vai fazer com que ele mude sua forma de pensar. Nunca mudou a minha, pelo menos. Castigos e proibições só nos obrigam a inventar maneiras mais sutis de continuar reproduzindo as mesmas práticas, e essa sutileza pode deixar a coisa ainda mais difícil de ser combatida. O que você faria para tentar mudar a cabeça do seu filho? O que você gostaria que fizessem para mudar o seu comportamento, se esse filho fosse você?
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