O menino do Morumbi

O menino do Morumbi

mlkelder@live.com

Em 1975, aos 19 anos, Muricy era tido como mascarado pela torcida e pela imprensa

O São Paulo investiu anos até criar o craque Muricy*

Muricy praticamente nasceu dentro do São Paulo. Garotinho, já era ídolo e craque numa equipe quase invencível de dentes-de-leite. Ele cresceu, seu futebol cresceu junto. Depois ganhou fama de mascarado. Mas seria verdadeira?

O menino não sabia mais o que fazer com tantas bicicletas: abrir uma loja, vendê-las, dá-las de presente, trocá-las por bolas de futebol? Quando ganhou a primeira, emocionado e nervoso na frente das câmeras de televisão, uma dúvida assim nem de longe passava pela sua cabeça. Ele nunca tivera uma bicicleta na vida. Por isso haveria de brincar com ela por muito tempo, dando voltas e voltas pelas ruas estreitas do bairro de Ferreira, e quem sabe pedalando bem contente todos os dias de casa ao colégio.

Mas, nos seus treze anos, como Muricy poderia imaginar que o desejo jamais atendido no dia do aniversário ou no Natal iria transforma-se de repente num grave problema? As bicicletas continuavam chegando como se apenas uma não bastasse para deixá-lo feliz. E ainda restavam muitas para premiar o melhor jogador de cada rodada do I Campeonado de Dentes-de-Leite de São Paulo. Quase sempre ele mesmo.
Muricy Ramalho nos anos 1970

Foto: Lemyr Martins

Muricy e sua cabeleira, que tirava o técnico Poy do sério

O objetivo do campeonato, que despertava grande interesse na cidade, em 1969, era incentivar os garotos no futebol. Então, os organizadores Eli Coimbra e Roberto Petri decidiram entregá-las também a outros meninos bons de bola. Vitor Hugo, Colonesi, Monga, Toninho Vanusa. Muricy virou quase um hours-concours.

Com a camisa 8 larga no corpo mirradinho de 1,48m, olhos puxados, cabelos sempre desalinhados, o topete caindo na testa, bem diferente na fotografia dos companheiros bem penteados e mais crescidos, ele comandava o time do São Paulo que, para muitos foi a mais brilhante equipe infantil já montada no Brasil. “Uma maquininha de jogar futebol”, diziam. Ficou invicta sessenta jogos. Vários são-paulinos, que não se recordam de todos profissionais da época, decoraram a escalação dos fantásticos dentes-de-leite: Nando; Blassi, Vlamir, Ricardo e Biti; Geraldinho e Ministrinho; Valtinho, Colonesi, Muricy e Vitor Hugo.

Hoje, seis anos depois, alguns pararam de jogar, como Nando e Ricardo; Bassi está no interior de Minas; Vlamir foi para o Palmeiras, Biti para o Corinthians, Ministrinho e Vitor Hugo – este tinha torcida própria, só dele, com faixas e bandeiras – para o Juventus; Geraldinho é estudante de engenharia; e Valtinho e Colonesi chegaram ao Juvenil A do São Paulo.

Muricy, o menino prodígio, confirmou plenamente as suspeitas que o pirralhinho trazido ao clube pelo tio aos 9 anos de idade, tinha jeito de craque. Tornou-se profissional e é agora aos 19 anos (30/11/1955), muito mais que uma simples esperança.

Quem ainda teimava em não acreditar, achando que a maioria dos juvenis acaba não explodindo, deve ter se convencido ao vê-lo em ação, há duas semanas, na I Copa São Paulo. Escalado às pressas, por causa da gripe de Silva (surgido de uma safra anterior), deu uma exibição de talento na vitória de 2 x o sobre o Peñarol: com toques rápidos, lançamentos longos, passes perfeitos e chutes inesperados, violentou o estilo lento e cuidadoso do São Paulo, imprimindo à equipe um ritmo veloz e altamente eficiente. No domingo, dia 2, a sua injusta substituição permitiu a reação do Corinthians (que empatou por 2 a 2 e venceu nos pênaltis).

O técnico Poy, que vem acompanhando a sua evolução da escolinha à equipe principal, não tem o menor receio de profetizar: “ele é jogador de seleção brasileira”.

Exagero do Poy? O São Paulo não acha. Por confiar nele, os diretores responderam polidamente com sorrisos às propostas de empréstimos ou cessão definitiva recebidas de inúmeros clubes. Disseram não a Telê, admirador confesso de seu futebol, ao tentar levá-lo para o Atlético Mineiro; a Almir de Almeida, que queria tê-lo primeiro no Coritiba e depois no Vasco; a Valdemar Carabina, amigo íntimo da família, convencido de que com ele o Atlético Paranaense não deixaria mais o Coritiba ser campeão; e sem falar na Ponte Preta, no Marília, em vários times do interior paulista.

Além dos dois meses em que, por reinação, fugiu do Morumbi para jogar futebol de salão no Palmeiras – logo o apanharam de volta -, só saiu de lá uma vez. Foi em 1973, quando o São Paulo sentiu que precisava emprestá-lo para que ganhasse maior experiência esportiva e humana. Era bom demais para continuar no juvenil, muito garoto para ser titular nos profissionais. Mas Poy, cioso, tomava precauções. Temia que pudesse estragar-se, adquirir perigosos vícios – quem o salvaria das bolinhas, por exemplo? Em Alfredo Gonzalez, porém, ele confiava. Autorizou seu empréstimo à Ponta-grossense de Ponta Grossa (PR). E lá se foi Muricy, com seu novo técnico e jogadores de nome, como Paulo Borges, Lourival e Benê.
Colonesi, Muricy Ramalho e Valtinho

Foto: Lemyr Martins

Colonesi e Valtinho acompanharam Muricy até os juvenis

“Quando chegamos tive uma impressão ruim. Depois descobri que era um local bom, sossegado. Todos nós, os jogadores, vivíamos numa república, formávamos um ambiente ótimo, para onde fosse um o resto acompanhava. A gente treinava, jogava, viajava pelo interior, alguns lugares até me assustavam, eu sofria de frio e de saudade, me distraia com um cineminha, uma partida de buraco ou um baile no domingo. Era legal, o povo gostava de mim”.

Ponta Grossa, a 100 quilômetros de Curitiba, terceiro município paranaense, com 200 000 habitantes, montou na época um bom time. Os dois tradicionais clubes da cidade, Operário e Guarani, licenciaram-se para que fosse criada a Ponta-grossense. Houve grande entusiasmo popular, porque Benê voltou a marcar gols, Paulo Borges lembrava seus tempos de eficiente ponta-direita e Muricy, aos 17 anos, deslumbrava a torcida com um brilhante estilo de jogo. O Diário dos Campos não se cansava de publicar fotos suas e o prestigiado comentarista Barros Júnior, entusiasmado, perguntava ao microfone da Rádio Clube como é que o São Paulo cedera um craque como aquele.

Quando a Ponta, de virada, derrotou o Coritiba por 2 a 1 no estádio Paula Xavier, impedindo que o adversário fosse campeão invicto, Muricy consagrou-se de vez – carregado pela multidão que gritava seu nome, participou da festa da vitória na Avenida Vicente Machado.

Entretanto, Ponta Grossa era pequena demais para um jogador como Muricy. Terminado o campeonato, preparou-se para voltar. E a torcida que o cercava de apelos não queria deixar.

Chegou a ter dúvidas. Gostava da cidade, havia aprendido coisas: “jogar em Bandeirantes, sabendo que tinha gente armada em volta, ganhar e sair vivo me fez perder o medo”. Fizera amigos, não podia se queixar do pagamento: recebia em dia o salário de 2000 cruzeiros, fora bichos, que enviava ao pai.

“No ano que vem eu volto”, prometeu. Sabia que estava mentindo. Mas onde a coragem de negar algo à torcida que reconhecera as dimensões de seu futebol?

FORÇA DA IMAGEM

De novo no São Paulo, Poy o escalou para enfrentar o Coritiba no Morumbi, num sábado à tarde. Fez jogadas maravilhosas. A mais bonita delas: depois de apanhar a bola no meio-campo, lançou-a na área com absoluta perfeição para Mirandinha marcar. Era a sua estréia, em jogos oficiais, pelo São Paulo. E foi comemorar mostrando a camisa às arquibancadas, como num desabafo pela fama que nunca deixou de carregar e que o atormenta mais do que um pesadelo. A fama de mascarado.
Muricy Ramalho em sua estreia como profissional do São Paulo

Foto: Lemyr Martins

Muricy estreou contra o Coritiba entre os profissionais do São Paulo e confirmou a fama que tinha na base

“Fizeram de mim quase um deus, quando era criança, dono de um futebol deste tamanho”, estica os braços indignado. “Hoje, esses mesmos que me colocaram muito acima do que poderia ser dizem que sou mascarado. Eu aceito, sabe, que digam qualquer coisa de mim, que falem que joguei mal. Só não aceito essa acusação. Quem me conhece não diz isso”.

Para entender esse ainda adolescente é realmente preciso conhecê-lo fora de campo, mais a fundo. De preferência através de outras pessoas, pois só com grande esforço se abre para alguém.

“Aqui em casa, por exemplo, não conto meus problemas. Meu pai e minha mãe já têm bastante coisa para se incomodar”.

Eli Coimbra, que observou de perto sua ascensão, acha que precisa dizer de público umas verdades para que o compreendam.

“Marinho, o pai dele, foi um dos melhores jogadores de várzea de Pinheiros. É boa pessoa, mas dá superproteção ao filho e isso o estraga um pouco. Não faz por mal e, sem consciência do erro, está se tornando outro Nicola Rivelino. Ele precisa deixar o filho caminhar sozinho”.

Muricy não toca no assunto. No Morumbi, contudo, quem não conhece a figura de Marinho? Assíduo aos treinos, fazia questão que Poy escalasse o filho – se o técnico cedesse às pressões, Muricy forçosamente teria se queimado antes do tempo.

A infância foi difícil. Antes de trabalhar como motorista de táxi, o pai vendia frutas e verduras no velho Mercado de Pinheiros. Sem ter com quem ficar, Muricy era levado junto, todos os dias, às três da manhã. Dormia dentro de caixões de feira.

“Foi sempre um menino fechadinho, meio triste”, confirma a mãe.

Ela deixou de ouvir rádio. Tem medo de ficar nervosa com os comentários de que o filho é mascarado, como aconteceu recentemente quando um repórter anunciou pelo ar: “se o Muricy tem tanto futebol quanto pose, vai longe”. O comentarista Randal Juliano da Jovem-Pan, criticou-o com ironia e, ao fim do jogo contra o Peñarol, Muricy – contemplado com um rádio – foi entrevistado pela emissora. Não se conteve:

“Eu quero agradecer ao incentivo que vocês têm me dado. Muito obrigado, viu?”

O que parece tornar Muricy um jovem introvertido e tenso, apesar de um estilo de jogo que indica exatamente o contrário, é o terrível esforço que faz para controlar seu temperamento explosivo e rebelde. Ele concorda, depois de meditar um pouco.

PRIMEIRO TRAUMA

“A todo momento sou obrigado a contar até mil para não dizer o que estou pensando. Sofro demais com isso, sabe? Mas como vou fazer? Não posso xingar o técnico ou um companheiro de equipe. Depois, como irei conviver com eles?”

Nos dentes-de-leite, rei do time, não precisava desses esforços. Falava o que bem entendia, entrava duro nas jogadas, chegava mesmo a ser desleal. Coimbra e Petri, nas transmissões da TV Tupi, bem que lhe davam conselhos: “vamos com jeito menino, jogue na bola, não devolva ponta-pé”.

“Pelo que conheço do Muricy, ele será um novo Almir do futebol brasileiro. Um brigão”, diz Atílio Ricó, torcedor.

Toninho Vanusa, hoje no Palmeiras, em 1969 no Nacional, quando enfrentou Muricy, tinha uma impressão semelhante. “É um craque, um cara bacana, mas naquele tempo entrava para machucar sem dó”, diz.

“Eu era muito nervoso”, desculpa-se Muricy, provavelmente esquecido de que sua personalidade não mudou, apenas aprendeu a exercer forte auto-controle.

E não era assim. Na célebre decisão dos dentes-de-leite (os jogos duravam trinta minutos, não havia impedimento, as faltas eram cobradas sem barreira e os laterais batidos com os pés), necessitando do empate, não é que o São Paulo perdeu para o Nacional por 1 a 0, gol de Monga? Mais de 20 000 pessoas superlotavam o estádio Comendador Sousa. Devido a um enorme congestionamento, o ônibus do São Paulo estacionou a uns dois quilômetros e os meninos foram a pé. No final, sucederam as cenas dramáticas. Choravam os jogadores, os pais. Muricy caiu num berreiro inconsolável e atirava-se ao chão de desespero.

Já nos juvenis, crescidinho, continuou com problemas emocionais. Num treino, Poy xingou-o “para incentivar”. Muricy respondeu com palavrões mais fortes, trocou de roupa e ficou quinze dias em casa sem aparecer no clube.

“Fiz isso umas duas ou três vezes. Em todas as vezes o Dallora (atual diretor de futebol) veio me buscar e eu voltei. Mudei, claro, porque hoje sou empregado e muitos dependem do que ganho”.

Gasta pouco do que recebe. Ao assinar o atual contrato (60 000 cruzeiros por um ano), destinou 30% para a reforma da casa. Ajuda nas despesas, contribuiu para montar a lanchonete que o pai toma conta, perto de onde moram, na Vila Sônia, paga os estudos e sustento do irmão mais velho (Maurício, 23 anos, aluno do 3º ano de Medicina de Bragança Paulista, o que custa mais de 1000 cruzeiros mensais) e está comprando um terreno. O fuscão que usa para ir aos treinos é da família e foi retirado num consórcio. Não tem muitas roupas e as divide com Maurício.

Colonesi, Mário e Vitor Hugo são seus melhores amigos. Pretende casar com Fátima, sua namorada há dois anos, mas raramente sai de casa, onde fica vendo televisão. Só quando não está lá é que fuma cigarros filados: “questão de respeito, não vou fumar na frente do meu pai”.

Solitário, se entretém com palavras cruzadas, indiferente aos latidos da cadela Carolina. Eventualmente vai ao cinema – com a Fátima, só filmes românticos – e, quanto a livros, o último que terminou foi O Exorcista. Deixou de estudar quando foi para Ponta Grossa e agora está providenciando a matrícula no colegial, para mais tarde cursar Educação Física “porque o mercado de trabalho pode não ser bom, mas um jogador de futebol, por estar no ramo, tem maiores facilidades de arrumar um emprego”. Eleitor pela primeira vez a 15 de novembro último, não revela especial interesse pela política. Apesar disso, votou no MDB, “como todo mundo”, e espantou-se com os contrastes que observou em Teerã, “como excesso de riqueza e pobreza vivendo lado a lado”.

CHORO AMARGO
Capa da PLACAR 265 de 21 de fevereiro de 1975

Foto: Arquivo PLACAR

Capa da edição da PLACAR de 1975 que esmiuçava a carreira do jovem e promissor Muricy

Viajou bastante. Foi à Europa e a alguns países da Ásia e Oriente Médio, com a Seleção Paulista de Novos, no ano passado, depois de vencer o Sul-americano de Juvenis em Santiago – na decisão, participou da grande briga entre jogadores brasileiros e uruguaios. Com o São Paulo, esteve na Bolívia, Colômbia, Peru, Argentina e Chile (mandava postais para a casa: “Oi pai! Oi mãe! Aqui tudo bem…”), na Libertadores, mas não ficou no banco uma única vez. Guardou magoas, possívelmente sem saber que, ao incluí-lo na delegação, Poy dava sequência a um longo e paciente trabalho de formar um jogador criado dentro de uma escola de futebol.

Fora do São Paulo, prefere frequentemente ficar sozinho num canto – como no vestiário do Pacaembu, depois de um jogo contra a Ponte Preta em que foi substituído e por causa disso chorava baixinho, amargurado, não querendo falar com ninguém.

“Estou numa fase…”, queixava-se aos murmúrios.

E revoltava-se por dentro, porque não tinha vontade de dizer apenas isso. Como não diz – para surpresa dos que o julgam um garoto mimado e mascaradinho – que é o bom. E neste ponto demonstra uma sinceridade convincente.

“Não sou cobra, não. Sou um jogador comum, que se esforça ao máximo e que espera um dia ter algum nome. Só afirmo que preciso de continuidade. Se não me tirarem agora do time, com essa vontade que estou de acertar, não saio mais. Falando sério, viu? Dou tudo de mim, mas não sou lá essas coisas que disseram quando era criança”.

Na verdade, é uma das mais perfeitas revelações da novíssima geração do futebol brasileiro, made in Morumbi, talvez a maior promessa de ídolo nascido no São Paulo desde José Carlos Bauer, esse Muricy Ramalho, o Moji – menino triste brincando de bola com a alegria de quem pedala a primeira bicicleta.

*Matéria originalmente publicada na PLACAR 256, de 21 de fevereiro de 1975.

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